Depois de uma onda de fracassos em 2022, os serviços secretos russos que operaram na Europa adaptaram-se e estão mais perigosos que nunca. O jogo do “gato e do rato” voltou ao velho continente.
Os sinais são claros e estão a motivar alarme: a Rússia tem uma nova estratégia de espionagem em curso que está a fazer reaparecer agentes secretos em países menos hostis a Moscovo, onde montam as suas redes de operação . Para isso, os serviços secretos russos estão a recrutar um novo tipo de agente conhecido no meio como “os peles-limpas”.
O plano surgiu depois de os serviços secretos russos (SVR), que operam no estrangeiro, terem visto desaparecer o seu poder na Europa ao longo de 2022 com a expulsão de mais de 600 agentes que se faziam passar por diplomatas de todo o continente, e de pelo menos, oito operacionais russos com identidades falsas, terem sido desmascarados.
“As operações de informações têm vindo recentemente a aumentar, depois de centenas de expulsões de oficiais de informações e agentes russos de países ocidentais entre 2018 e 2022. Muitos desses russos reaparecem nos Balcãs, na Áustria e na Suíça, e é a partir de tais bases que os russos montam operações de espionagem, subversão e de assassinatos contra outros países europeus, incluindo Portugal”, explica Victor Madeira, um historiador especializado no estudo da contrainformação e subversão russa, a viver no Reino Unido.
Informações obtidas pelo think thank de Defesa britânico Royal United Services Institute (RUSI) parecem mostrar isso mesmo. Vários documentos dos “serviços especiais russos” obtidos pelos investigadores do RUSI revelam que a Rússia percebeu, depois de crescentes insucessos no campo de batalha, que precisava de relatórios mais fiáveis por parte das suas agências de informações. A solução foi colocar o vice-chefe de Gabinete do Kremlin, Sergei Kiriyenko, ao comando de “comités de influência especial”. Este organismo ficou responsável por coordenar operação contra o ocidente a tirar ilações.
O resultado não demorou a aparecer. Uma investigação do jornal suíço Neue Zurcher Zeitung, revela que o país está a tornar-se uma base cada vez mais importante para os serviços secretos russos, que utilizam o país para contornar as sanções impostas pelo ocidente. O próprio FIS, os serviços secretos suíços, reconhecem que pelo menos um terço dos diplomatas russos no país são espiões. Na Áustria o cenário não é muito diferente, com mais de 252 espiões a operar no país. De acordo com um briefing das secretas ocidentais obtido pelo Politico, os russos estão a utilizar agentes sérvios para infiltrar instituições europeias.
“Uma das marcadas diferenças entre 2018 e 2022, e a situação agora em 2024 é que os serviços russos são cada vez mais forçados a recrutar agentes com cidadanias estrangeiras, sem quaisquer laços visíveis à Rússia, para melhor poderem agir sem atrair atenção dos serviços de contrainformações ocidentais, tal como o SIS em Portugal. Chamam-se a estes agentes no jargão os ‘peles-limpas’”, explica Victor Madeira, especialista em segurança interna e investigador no Centre for Information Resilience.
Este novo foco neste tipo de agentes demonstra uma crescente preocupação do Kremlin para conseguir escapar ao olhar cada vez mais atento dos serviços secretos ocidentais. Este novos recrutas são geralmente cidadãos de países “não-russos” e são utilizados pelo SVR para “agir como intermediários e ocultar quaisquer ligações entre o acto cometido e a Rússia”.
Uma nova tendência também tem sido observada pelos especialistas. A Rússia parece estar cada vez mais confortável em utilizar grupos criminosos a operar no ocidente para “fazer o trabalho sujo”. Um exemplo disso foi a fuga de Artem Uss, um empresário russo ligado ao Kremlin, detido em Itália por suspeitas de vender informações tecnológicas militares à Rússia. Serviços de informações ocidentais acreditam que a Rússia contratou um grupo criminoso sérvio para organizar a fuga de Uss.
Ao mesmo tempo, os oficiais de informações “ilegais” também alteraram a sua forma de operar. A Unidade 54654 é responsável por criar uma rede de agentes operacionais russos escolhidos a dedo de forma a passar despercebidos até ao mais rigoroso escrutínio dos serviços de contrainformações ocidentais. O seu recrutamento é sempre feito através de terceiros, com ligações o mais distantes possíveis dos serviços secretos. Muitos são recrutados através de empresas fachadas, o que mantém os seus nomes fora de registos governamentais. Outros são recrutados diretamente das universidades russas, com particular atenção a indivíduos dos Balcãs ou de África.
O rasto digital
Estas mudanças surgiram depois da agência de informações militares russa, o GRU, ter concluído que muitos dos seus operacionais estavam a deixar um rasto digital demasiado grande, levando a que organizações como o grupo Bellingcat expusessem muitos dos agentes a operar na Europa. Isto levou a que o general Andrei Averyanov, chefe da Unidade 29155, responsável pelos assassinatos na Europa e suspeita de estar por detrás do envenenamento de diplomatas americanos e canadianos, pusesse em marcha uma mudança drástica na organização deste grupo.
Para evitar deixar rasto, os agentes russos abdicaram de usar telemóveis e passaram a utilizar linhas fixas para comunicar. Além disso, parte do treino deixou de ser feito na base da organização e passou a ser realizado em localizações diversas, para que estas não fossem identificadas em publicações nas redes sociais. Ao mesmo tempo, o grupo deixou de recrutar os seus elementos entre militares das forças especiais, de forma que o passado militar de um agente não o denuncie.
“Estamos a voltar ao tempo do gato e do rato. A Rússia está a reforçar a rede de agentes. Este conflito está a ensinar-nos algo muito importante. Por mais que tenhamos satélites ou equipamentos evoluídos, a obtenção de informações pela via humana continua mais fundamental que nunca”, reforça o major-general Isidro de Morais Pereira, garantindo que uma das principais preocupações dos espiões continua a ser a obtenção de segredos militares ocidentais, mas não só.
Prova disso é o facto de nenhum campo da atividade subversiva russa estar tão evoluído como no campo da ciberespionagem e nas campanhas de desinformação. Aqui, a Rússia conseguiu criar o que os especialistas chamam de um “ecossistema de desinformação” com múltiplas fontes de propagação de mensagem que se citam umas às outras, disseminando a mensagem do Kremlin com o propósito de “poluir o discurso” político em determinadas áreas. Foi isso que aconteceu no ano passado na Moldova, que após ter-se candidatado a aderir na União Europeia, viu várias campanhas coordenadas a atacar a presidente. Portugal também é alvo destas campanhas.
Estas campanhas são cada vez mais profissionalizadas e, por isso, mais poderosas no que toca a sua disseminação. Em janeiro, foi descoberta uma rede de bots com mais de 50 mil contas que fazer milhares de publicações por dia em alemão na rede social X, antigo Twitter. Um mês depois, as autoridades francesas anunciam a descoberta de uma rede de grandes dimensões, com 193 sites que espalham desinformação não só em França, mas também na Polónia e na Alemanha.
Os grupos cibercriminosos russos com ligações ao SVR e ao GRU também têm dado nas vistas nos últimos anos. O “Cosy Bear” conseguiu infiltrar-se e capturar todas as comunicações de email dos principais executivos da Microsoft. Vários grupos de piratas informáticos com ligações ao Kremlin têm feito várias ações hostis contra o Ocidente como os Killnet e os Anonymous Sudan. O Killnet desde o início da guerra na Ucrânia foi responsável por ataques significativos aos serviços de inteligência alemães, à Microsoft e ao Twitter.
“Somos alvos destas ações hostis da Rússia há muito tempo. A Internet Research Agency, uma fábrica de trolls russa criada na cidade de Olgino, tem tido um grande impacto. Milhares de bloggers pagos utilizam as redes sociais e a internet para espalhar informações falsas e beneficiar a Rússia e a política do Kremlin”, conta o professor José Filipe Pinto.
Esta estratégia faz parte do que o catedrático diz ser o Sharp Power russo, uma estratégia que surte os efeitos da guerra sem disparar um tiro. O objetivo não passa só por obter segredos militares, tecnológicos ou contornar as sanções. O propósito é semear as sementes da discórdia no ocidente, particularmente entre países da NATO, como Portugal, para que o apoio à Ucrânia diminua e a Rússia consiga progredir no campo de batalha. Mas, agora, os seus métodos estão cada vez mais evoluídos.
“Estamos a ser alvo de atividades preparatórias de ampliação do descontentamento no mundo ocidental. É guerra psicológica, com o objetivo de desmoralizar as forças do adversário e a sua liderança. Mas também têm como objetivo trazer para a sua causa quem é neutro. A Rússia está a investir fortemente nisto”, alerta Isidro de Morais Pereira.
Fonte: CNN Portugal (https://cnnportugal.iol.pt/espioes/russia/espioes-russos-estao-de-volta-e-a-recrutar-peles-limpas-por-toda-a-europa-incluindo-portugal/20240408/66048490d34ebf9bbb3bcdb9)
By: João Guerreiro Rodrigues | Catarina Guerreiro