Posse de armas é atribuída à história particular dos Estados Unidos e se reflete como um direito fundamental na Constituição, embora muitos a interpretem de forma diferente.
Salvador Ramos — autor do massacre em uma escola no Texas (EUA) em que morreram 19 crianças, 2 professores e ele próprio; em maio de 2022 — completou recentemente 18 anos.
Para comemorar a ocasião, ele se presenteou com dois fuzis semiautomáticos do tipo AR15, um dos modelos mais comuns em ataques em massa anteriores, e 370 cartuchos de munição.
Ramos, um jovem com problemas de adaptação e comportamento errático, de acordo com seus parentes, adquiriu as armas de forma totalmente legal.
Ele simplesmente entrou em uma loja, fez seu pedido, pagou e saiu.
Isso pode parecer inconcebível em qualquer país, mas não nos Estados Unidos, onde manter e portar armas é um direito fundamental protegido pela Constituição. E, mais especificamente, pela Segunda Emenda.
O que é e por que surgiu?
Em 15 de dezembro de 1791, os então novíssimos Estados Unidos da América ratificaram a Declaração de Direitos, as dez primeiras emendas à Constituição, confirmando os direitos fundamentais de seus cidadãos.
Dessa forma, a posse de armas estava no mesmo nível da liberdade de expressão, imprensa, religião ou reunião.
No ano de 1791, os Estados Unidos ocupavam cerca de um terço de seu território atual, com vistas à expansão para o oeste. Ainda era recente a vitória contra a Grã-Bretanha na Guerra da Independência (1775-83), na qual as milícias tiveram papel fundamental.
Milícias eram grupos de homens que se reuniam para proteger suas comunidades, cidades, colônias e, desde que o país declarou sua independência em 1776, Estados.
Sua principal arma longa era o mosquete, um dispositivo de infantaria usado até o século 19 que tinha um alcance de tiro efetivo de cerca de 100 metros e podia ser disparado cerca de três vezes por minuto.
Naquela época, em que a identidade cultural americana estava sendo forjada, muitos viam os soldados regulares como instrumentos a serviço do poder, com capacidade de oprimir cidadãos, e acreditavam que a melhor maneira de se defender era portando suas próprias armas e, se necessário, organizar-se em milícias.
De fato, os antifederalistas (opositores de um governo central forte) rejeitaram a existência de um Exército profissional, embora este tenha sido estabelecido, entre outras coisas, por ser considerado essencial em caso de guerra contra um adversário estrangeiro.
Assim, depois que a Constituição foi oficialmente ratificada em 1788, James Madison, um dos “pais fundadores” e depois presidente dos Estados Unidos, elaborou a Segunda Emenda com o objetivo de empoderar as milícias nos Estados.
E embora a Segunda Emenda não tenha limitado a capacidade do governo de fazer cumprir a lei por meio do uso da força, ela tirou a autoridade de desarmar os cidadãos que queriam se defender.
Uma alteração, duas visões
Durante anos, os defensores da posse de armas por civis viram a Segunda Emenda como consagração de seus direitos.
“A Segunda Emenda continua sendo fundamental para proteger os direitos dos proprietários de armas que cumprem a lei”, diz a página da Associação Nacional de Rifles (NRA, na sigla em inglês).
A NRA, que com 5,5 milhões de membros é um dos grupos de interesse mais influentes na política dos EUA, se opõe à maioria das propostas para fortalecer as regulamentações sobre armas.
Os proponentes desta posição sustentam que o trecho “direito do povo de manter e portar armas” da Segunda Emenda implica um direito constitucional individual de possuir armas de fogo e torna inconstitucional qualquer regulamento proibitivo ou restritivo.
No entanto, os opositores da posse de armas se concentram mais na primeira parte do texto da Segunda Emenda, que se refere a “uma milícia bem ordenada”.
Eles argumentam que os redatores da Constituição de 1791 não pretendiam conceder aos cidadãos o direito individual de possuir armas, mas sim estabelecer um direito coletivo de defesa em caso de agressão externa.
Dessa forma, consideram que as pessoas não devem ter o direito individual de portar arma de fogo e que as autoridades federais, estaduais e municipais podem regular, limitar ou proibir esse tipo de arma sem que isso seja inconstitucional.
DC vs Heller
De fato, a visão de que o direito ao porte de armas está vinculado às forças de defesa coletiva foi imposta em sentença do Supremo Tribunal de Justiça em 1939.
Sob esta decisão, os governos estaduais e locais tinham autoridade para proibir a posse individual de armas, como foi o caso no Distrito de Columbia (Washington DC, capital dos EUA).
Isso perdurou por quase sete décadas, mas mudou em 2008 com a decisão histórica da Suprema Corte no caso de DC vs. (Dick) Heller, um policial local que entrou com uma ação por ter sido impedido de registrar uma arma pessoal.
O mais alto tribunal dos EUA decidiu, por uma margem de cinco votos a quatro, que a Segunda Emenda protege o direito individual de possuir armas de fogo para uso legal.
Embora reconhecendo que esse direito não é ilimitado (exclui, por exemplo, armas de grande calibre, como metralhadoras), a Suprema Corte americana decidiu que a proibição total do cidadão de portar armas em casa é inconstitucional, pois tal restrição violaria o propósito de autodefesa da Segunda Emenda.
Desde então, tribunais inferiores tiveram que julgar vários processos contra proibições de armas de assalto, requisitos de registro e proibições visíveis de porte impostas por alguns Estados.
Hoje há uma acirrada disputa política e social sobre a conveniência de continuar a permitir ou proibir a posse individual de armas de fogo nos Estados Unidos, que é especialmente inflamada quando ocorrem tragédias como a de terça-feira na escola primária de Uvalde.
No momento, estão vencendo os que defendem esse particular direito.
Fonte: BBC News